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Carta de um desconhecido

  • Foto do escritor: Mirella Mariani
    Mirella Mariani
  • 4 de jan.
  • 8 min de leitura
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"Eu tenho dúvida se você já leu uma carta, mas certamente encontrou um bilhete ou recebeu uma mensagem de alguém, que desejou passar um recado e eu não sou diferente. Também estou aqui para contar que hoje, me encontro finalmente em paz.


Digo isso, visto que passei os últimos meses tentando entender, quais eram os motivos que me fizeram ter a percepção olhando para o mundo, de que eu, de fato não me encaixava nele.


Achei que tinha um ótimo ciclo de amigos, a minha família sempre me deu muito apoio e no trabalho sempre fui um cara arrojado, dedicado e que se destacou. Tive amigos de escola, no trabalho e da vida. Meus pais, irmãos e toda minha turma, sempre foram presentes e isso me proporcionou muitas facilidades, para conquistar espaços e me desenvolver pessoalmente e profissionalmente.


Mesmo assim. um dia adoeci. Adoeci, e hoje reconheço, por olhar o mundo com uma lente de aumento. O que para muitos passava leve e não causava maiores consequências, para mim, começou a causar incômodo e dor. Minha doença não é incomum. Eu fui ficando triste, me isolando, parei de comer, não tinha vontade de falar com ninguém e só queria dormir. 


E você que está lendo esta carta, deve estar se perguntando, o que foi que aconteceu para que ele ficar assim?


Hoje sei que depois de algumas perdas (divórcio, demissão, luto), em conjunto com o que se passa na minha cabeça, me encontro insistentemente a olhar para fora e para dentro. Isso me deixou nesse estado de tristeza profunda e com outro sintoma, ambos responsáveis por eu me ferir e ser julgado.


Diversas vezes tentei me levantar e fui fazer coisas que pudessem me deixar feliz. Olhava para todos os lados e via como era fácil para a maioria das pessoas “viver numa boa”, sem sentir culpa ou pensar que estaria prejudicando alguém ou pior ainda, a mim mesmo. Aquela coisa do prazer imediato, sem medir as consequências, que a muitas pessoas nem percebem que estão fazendo, quando passam horas maratonando séries, fazendo compras online, no bar com amigos ou mesmo num simples videogame.


E como tudo foi acontecendo...


Diariamente, não propositalmente, mas pôr que levava Kane meu fiel amigão para passear, encontrava meu vizinho no lobby, esperando a mulher sair para o trabalho. Em seguida, ele retornava para o seu apartamento. O motivo: transar com a mulher do seu melhor amigo, quando este, também saia para trabalhar. Depois ele descia e se vangloriava: “Agora vou treinar na academia, porque depois do treino eu como a personal”.


Outro morador do prédio, saia diariamente dizendo que, sua diversão era assustar os mendigos na rua, pois detestava àquele bando de inúteis que viviam na frente do seu comércio. Completava que para isso, já havia mandado instalar portas com circuitos de eletricidade, para dar choques em quem encostasse ali para dormir.


Havia o sujeito, repugnante este, que ficava no seu binóculo, olhando adolescentes transando no prédio vizinho e depois se masturbava. Ele compartilhava com o grupo de amigos nas reuniões de condomínio, em alto e bom som, detalhes da experiência. Criticava o desempenho do garoto e se deliciava com o “corpinho jovem da menina”. Esse mesmo cara, depois descobrimos, invadia o depósito do prédio e sacava objetos de outros moradores das suas baias, deixando outras coisas como pedras no lugar ou outros objetos sem valor, para disfarçar sua atitude.


Falando de mim, pois sou eu quem escreve e que realmente importo.


Ao pensar no meu trabalho, o qual gostava muito, foram muitas as vezes que cheguei pontualmente e meu chefe, que nunca estava lá, me pedia para cometer frades em pedidos de clientes, como diminuir o valor de notas de entregas. O motivo? Você certamente já concluiu. Para que ele não pagasse tanto imposto.


Por óbvio que o pedido era feito sempre por e-mail, pois ele só acordava ao meio dia e ia uma vez por semana ao escritório. Entrei como estagiário na empresa, enquanto fazia a faculdade e fui progredindo. Ele nunca me registrou e mesmo quando insistia e perguntava o motivo, sua resposta é de que aquele era o novo modelo de negócio, e ainda completava de que quem sabe um dia, me colocaria como sócio de algo que estaria pensando em lançar no futuro. Assim fiquei sem receber meus direitos trabalhistas e até mesmo o meu salário alguns meses ou os valores das inúmeras horas extras que me fez trabalhar.


Se for olhar para o aspecto social, por diversas vezes, eu que não uso drogas, fui nomeado o carona do dia, para levar meus amigos para casa. Esta situação acontecia, depois que muitos deles, bêbados ou drogados de tanto usar MD ou maconha eram carregados por mim, no final da balada ou de barzinhos.


Outras tantas ocasiões, deixei de ser convidado para festas e eventos na casa deles, por que já havia me separado e era considerado careta. Alguns chegaram a comentar intimamente, o que me fazia sentir um misto de crueldade da parte deles e alívio da minha, que a desculpa seria de que eu não me encaixaria no que planejavam.


Olhava as pessoas se endividando para montar negócios arrojados, à base de inúmeros empréstimos que não tinham a menor condição de pagar. Colegas se casando com parceiros que não sentiam amor, mas garantiam a estabilidade financeira que queriam, garantindo moradia, a fictícia família e o pagamento das contas no final do mês. Não havia sentimento, pareciam contratos, mas afinal o importante era que pudessem andar no carro do ano e a garantia de fazer os procedimentos que disfarçavam a idade, visto que imaginavam ter sido contemplados com perspectivas de projeção.


Amizades de anos foram se rompendo por causa de questões políticas. Fui notando que nas redes sociais as pessoas corajosas por trás das telas, passaram a ter mais importância do que a ciência, falando coisas agressivas umas para as outras, construindo imagens de beleza eterna, dando opiniões sobre todos os assuntos a ponto de gerar muita discórdia e polarizações, levando populações a guerras e amigos ao rompimento, com a disseminação de maldade, ignorância e mentiras. Uma grande amiga por exemplo, foi abandonada durante a gravidez, pois seu crush, mais velho e rico, tinha vergonha do ocorrido e não queria assumir a paternidade, do outro lado, posava na rede social com mulheres famosas e deslumbrantes.


Quanto à questão ética, os valores são inacreditáveis.


Muitas vezes quando fui à praia vi pessoas, diversas vezes comprando produtos pirateados e em seguida reclamando que preferiam morar em países sérios. Essas mesmas pessoas voltando de viagens desses países sérios, carregando em suas malas produtos importados, com valores muito acima do que é permitido. O mais interessante, torcendo para não serem pegas pela alfandega. Alguns deles, quando pegos, por não terem declarado o que deviam, tentando inclusive negociar o pagamento de modo informal.


Negociar pagamentos de impostos, subornar fiscais, comprar carteiras de motorista, evitar fiscalizações, ignorar o pagamento de prestação de serviço realizado, parece ter virado a regra. Ah, lembrando que perder a carteira de motorista por dirigir bêbado, por passar do limite de velocidade ou por parar sobre a faixa de pedestre, também não é tão incomum assim e muita gente consegue dar um jeitinho com o despachante, para reavê-la.


Passei os últimos anos me questionando sobre valores e culpa.


Se alguém que adoece, porque como eu, acaba buscando alívio da sua tensão em comportamentos escondidos, como nas compras por impulso, em pornografia, em apostas, no uso excessivo de internet ou até cometendo furtos de objetos (cleptomania), esse alguém estaria falhando com valores, sendo igual a todos os caras que comentei antes?


Seria ele um cara que não conseguiu tolerar o mal estar e passou a buscar alívio da tensão, ou prazer, em comportamentos? Existe alguma diferença entre quem adoece dos demais? Será que pela lei do homem, quem comete todos esses crimes, muitas vezes ficando impune e até reforçados pelo meio, é mais valoroso do que o doente?


É muito difícil para a maioria das pessoas olhar para um doente e não apontar-lhe o dedo dizendo: “Esse pilantra passou horas na frente da tela e consumindo tudo o que a família lhe deu de melhor, é um vagabundo!”. De outro lado, esse mesmo sujeito, não sente o menor remorso ao pagar para que alguém não fiscalize a sua empresa.


Quem é a exceção?


Exceções são aqueles que têm pessoas doentes por perto, profissionais de saúde e os poucos que sabem o que é empatia (se colocar no lugar do outro, mas com o referencial do outro, não com o seu), eu só encontrei antes de entrar aqui na clínica, os caras do dedo na cara. Nunca souberam a diferença de permanecer com valores, mesmo estando doente.


Meus amigos aqui da internação, fizeram coisas que se arrependem, não porque têm problemas de caráter, mas porque estão doentes. Eles e poucas pessoas que já conversei, acham que existe esta diferença.


Acredita que ter caráter é diferente de ter uma doença. Se você fica doente, pode ficar bom. Mas se você é mau-caráter, será que isso tem jeito? Parece uma questão de personalidade, e se o cara é ruim, vai morrer ruim. Vi sujeitos com mais de 50 processos judicias, enquanto eu nunca atrasei uma conta e eles me disseram que eu não prestava para um monte de coisas. Será que eu não presto, ou que me classificava era um desses caras ruins, com personalidade antissocial.


Venho lidando diariamente com meus fantasmas e com esse estigma, que me trouxeram aqui nessa clínica. Lembrando que diziam que não tenho caráter, porque adoeci, enquanto aqueles que já infringiram diversas normas sociais e leis continuam desfilando sua “verdade dissimulada” se apoiando uns nos outros.


Na turma aqui da internação tem de tudo.


Gente que como eu, quer ficar bem, gente maluca de verdade, gente sofrida, gente abandonada e gente que quer fugir. Mesmo com tanta diversidade, a maioria sabe exatamente a diferença entre doença e caráter, é gente boa e têm valores. Como aconteceu comigo, suas famílias, amigos e até alguns desconhecidos, também apontaram o dedo em suas caras.


Aqueles mesmos, que não pagam impostos, têm amantes, têm inúmeros processos judiciais, compram produtos piratas, não registram funcionários, abandonam amigos, grávidas e a família, devem para todo mundo e dirigem bêbados. Eles acham que não erram e inclusive, têm certeza absoluta disso, são intocáveis e perfeitos. Comentam que não erram e que ficar doente é uma desculpa para os fracos!


Me sentir bem é minha responsabilidade?


Em terapia e com a ajuda de meu psiquiatra fui reconhecendo, não serem todas as coisas de minha responsabilidade. Olhar para meus valores e para o que posso mudar, sim. Foi recomendado que eu procurasse também me divertir e encontrar coisas que me deixam feliz. Para que eu me afastasse dessas pessoas, que construísse um entorno saudável e me preocupasse comigo. Não é nada fácil, me sinto muito sozinho e triste.


Tomo muito remédio, e não gosto. Não gosto de onde estou e por isso estou escrevendo. Não me encaixo nesse mundo. Cansei dessa vida de hipocrisia. Hoje quando você ler esta carta, já estarei em um lugar melhor. Vou descansar. Todas as pessoas que me vem me visitar ou falam de mim, dizem que sou mesmo fraco, que sou chato, me apontam o dedo, vão se livrar de mim. Elas estão certas, afinal, nunca fizeram nada de errado. Já estou pronto e digo ADEUS!"


O que aconteceu? (não se preocupe)


João Batista, 35 anos foi encontrado enforcado com o próprio pijama na clínica em que estava internado. Seu médico foi muito rápido e conseguiu fazer a massagem cardíaca a tempo. Seu diagnóstico, Depressão Grave e Cleptomania.


Hoje, cerca de três meses depois deste episódio, João está na casa de sua avó, que nunca deixou de ir a clínica visita-lo e pagando por seu tratamento.  Ele montou um pequeno negócio de auditoria fiscal. Está abstinente dos furtos, que foram episódios únicos em sua vida (furtou pequenos objetos sem valor e devolveu todos), além de coordenar uma sala para anônimos.


Sua depressão está em remissão e está namorando uma amiga de faculdade! Seus amigos mais próximos voltaram a falar com ele e o têm o convidado para ir a festas. João pratica corrida quatro vezes por semana. Passa em terapia toda semana e em consulta médica mensal, mantém o psiquiatra da clínica que chama de “MEU ANJO”!


(Nome, idade e dados relacionados à história foram ajustados para preservar a identidade do paciente, o contexto foi adaptado pelo mesmo motivo)

 

  Psicóloga Mirella Mariani



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Psicóloga Mirella Martins de Castro Mariani

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©2023 por Psicóloga Mirella Martins de Castro Mariani 

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